De entre os componentes mais prevalentes da dieta, tem sido o leite (de vaca) alvo de uma série de comentários negativos, que surpreendem até pela sua violência. Mas que evidência científica de boa qualidade e com impacto clínico existe que confirme (ou não) estas convicções?
Como temos afirmado inúmeras vezes, a saúde é um dos campos onde provavelmente os mitos e as crenças mais se encontram enraizados.
Dentro desta, é a nutrição a área onde as invenções e os erros mais se acumulam. E é uma pena, porque existe excelente evidência científica sobre os aspectos de segurança e risco dos componentes da dieta normal, assim como dos padrões de alimentos para doentes com patologias específicas (diabetes, hipertensão, etc.).
De entre os componentes mais prevalentes da dieta, tem sido o leite (de vaca) alvo de uma série de comentários negativos, que surpreendem até pela sua violência – quase parecendo uma cruzada – claramente desajustada ao problema específico. Aumento do risco de cancro, de diabetes, de fracturas osteoporóticas, de esclerose múltipla e de problemas cardiovasculares são apenas exemplos dos malefícios atribuídos a este componente da dieta.
Mas que evidência científica de boa qualidade e com impacto clínico existe que confirme (ou não) estas convicções?
Em primeiro lugar, é importante reconhecer que, para poder-se estabelecer um nexo de causalidade entre um factor de risco (neste caso a ingestão de leite) e um problema de saúde (seja uma doença, um sintoma, um sinal, etc.) temos de possuir um estudo experimental, em que seleccionámos ao acaso um conjunto de pessoas, dividimo-las aleatoriamente em dois grupos (um bebe leite regularmente e o outro não) e analisamos no tempo os indicadores clínicos que achamos importantes (aumento do cancro, de eventos cardiovasculares, etc.). Estudos que apenas comparam pessoas que bebem leite com as que não o bebem na sua vida normal (chamados estudos observacionais) são válidos, mas não permitem concluir com a mesma certeza a relação eventualmente encontrada entre o leite e potenciais doenças. Isto porque pode haver outras causas para essas doenças, sintomas, etc. que nada tenham a ver com a ingestão de leite. É importante reconhecer que todos estes estudos – independentemente do tipo – procuram representar, em grupos limitados de doentes (as chamadas amostras), uma realidade potencialmente existente em toda a população de onde aqueles foram seleccionados, já que não é possível estudar toda a gente.
Um dos mitos levantados contra o leite é o da sua potencial relação com o cancro. Que provas existem de esta relação ser verdadeira? Numa revisão sistemática da literatura recentemente publicada (Nutrition Journal 206;15:91) foram analisados 11 estudos incluindo um total de 778.929 doentes procurando determinar se havia alguma relação entre o consumo de produtos lácteos e a mortalidade por causas oncológicas. As conclusões destes investigadores foi que, quer com a ingestão de leite de vaca, quer de iogurte, de queijo ou de manteiga não se verificou qualquer aumento da mortalidade de cancro em ambos os sexos. A única excepção foi um muito ligeiro aumento de cancro da próstata, mas apenas com leite gordo. Baseados nos resultados destes estudos permitem, portanto, afirmar que a ingestão de leite de vaca não influencia em nada o risco de mortalidade global por cancro.
A segunda área da saúde em que o leite tem sido questionado é o da obesidade e risco cardiovascular. Também aqui não se confirmam estas crenças: numa revisão sistemática canadiana incluindo um conjunto de 21 outras revisões – uma espécie de síntese de sínteses (Advances in Nutrition 2016;7:1026-40) – não se detectou qualquer aumento de risco cardiovascular, concluindo os autores que o consumo regular de vários tipos de lacticínios é neutro ou mesmo favorável na saúde do coração. Curiosamente, uma revisão sistemática da Cochrane (considerada universalmente como a melhor prova científica disponível sobre benefícios e riscos de uma qualquer intervenção) indica uma melhoria marcada no risco cardiovascular com a ingestão da dieta mediterrânica que, como é sabido, é composta por um rácio alto de gorduras monoinsaturadas versus saturadas, ingestão regular de vinho, elevada de legumes, gramíneas, cereais e fruta/vegetais, baixa de carne e significativa de peixe, e consumo moderado de leite e de produtos lácteos (Cochrane Database of Systematic Reviews 2013, Issue 8. Art. No.: CD009825).
Quanto à obesidade, os resultados da ingestão de lacticínios são contraditórios quer se trate de adultos, em que a taxa de obesidade pode aumentar ligeiramente (Ann Epidemiol 2016;26:870-882), quer em crianças, onde parece diminuir (Eur J Clin Nutr 2016;70:414-23).
Portanto, baseados nestes estudos seleccionados pela sua alta qualidade metodológica, não parece justificar-se o receio da ingestão de leite e o risco destas doenças. É ainda importante lembrar que os riscos que temos estado a mencionar são de muito modestas dimensões: no caso do aumento do cancro da próstata por exemplo, o que estamos a falar é centenas de homens beberem leite diariamente para se verificar um cancro a mais durante anos a fio.
Finalmente, e à guisa de lembrança, há que reconhecer que a eliminação de componentes da dieta pode ter consequências negativas, já que podem fazer falta ao desenvolvimento harmonioso nos jovens ou à manutenção de uma boa qualidade de vida nos adultos.
António Vaz Carneiro, Saúde
Fonte: visão/bolsa de especialistas