“É preciso desmistificar a ideia de que os produtos lácteos são nocivos para a saúde”
Maria Cândida Marramaque, há 18 anos responsável pela assessoria técnica da Associação Nacional dos Industriais de Laticínios (ANIL), acaba de ser nomeada diretora-geral, sucedendo a Paulo Costa Leite, recentemente falecido. Na sua primeira entrevista após iniciar funções, fala à “Vida Económica” das prioridades que tem pela frente, da nova estratégia europeia para os plásticos que “vai obrigar a indústria a repensar a embalagem” e da batalha que é preciso travar para “recentrar” o debate à volta dos lácteos, desmistifi cando a ideia de que são nocivos para a saúde, “como muitas vezes querem fazer passar”. “É preciso capitalizar a ideia da naturalidade do produto e da proximidade com a natureza”, diz.
A nova estratégia da Comissão Europeia para os plásticos, que visa iniciar o processo de transição para uma economia mais circular e que obriga a que, até 2030, todas as embalagens de plástico no mercado da UE sejam recicláveis e que o consumo de objetos de plástico descartáveis seja reduzido e a utilização intencional de microplásticos restringida, vai impor muitas mudanças no setor dos laticínios. Desde logo, “uma reformulação do que poderá a ser a presentação do produto ao consumidor”, alerta Maria Cândida Marramaque.
A nova diretora-geral da ANIL fala desde logo nas “palhinhas”. E avisa: “nas unidoses, a tendência será para acabarem e serem substituídas. Vamos ver como tudo funciona. Estamos a começar. E tudo tem a ver com o facto de haver muitos plásticos espalhados na superfície terrestre e a necessidade de haver uma maior responsabilização e acabar com este espalhamento. E as tampas e as roscas também poderão ser um problema. Tudo tem de ser acautelado. Ou seja, isto vai trazer para a indústria outra maneira de pensar a embalagem”. E as mudanças trarão custos. “Sempre que pensamos em mudar algo, há custos”, diz Maria Cândida, notando que “o ‘dossier’ [dos plásticos] é muito novo”, mas é “uma preocupação que vai nascendo nas empresas, que vão ter de começar a pensar como se podem adaptar à nova realidade. Vão ter de evoluir. Esta é uma medida em termos europeus que terá refl exos em todos os países. E temos forçosamente de acompanhar. E custos há sempre. Basta adaptar uma máquina que o custo é brutal. Muitas vezes fala-se por que é que há poucos tamanhos disponíveis dos produtos no mercado, mas mudar tamanhos implica máquinas diferentes e representa mais custos. E implementar um novo sistema de embalagem vai trazer um novo custo às empresas”, alerta esta responsável.
“A manteiga está na moda, novamente”
A ANIL agrega 48 empresas associadas, num total de 350 existentes no país. O setor é responsável por um volume de negócios de 1379 milhões de euros (dados de 2016) e dá emprego a 5800 pessoas.
“Temos um setor lácteo espalhado pelo país inteiro”, constata a nova diretora-geral, notando que “as maiores empresas são de transformação de leite”, com a Lactogal à cabeça – detida pela Agros, Proleite e Lacticoop, com 944,2 milhões de euros de volume de negócios e 2100 colaboradores – mas, também, com a Parmalat, a Bel e a Danone. “Depois temos empresas mais pequeninas. Maioritariamente as empresas de laticínios em Portugal são de transformação de leite em queijo”.
O Instituto Nacional de Estatística (INE) ainda não revelou números de 2017, mas os dados preliminares apontam para “um aumento, pequenino (0,4%), da recolha de leite e um ligeiro acréscimo da produção de lácteos”, embora não em todos os segmentos. “Temos um pouco menos de leite acidifi cado ou iogurtes e de leite gordo e um ligeiro acréscimo de leite magro, refere Maria Cândida. A verdade é que “tivemos um aumento do leite para consumo e a manteiga também cresceu”. Aliás, “a manteiga está na moda, novamente, e o ano passado foi de muita procura. De alguns anos para cá, a manteiga tem explodido”.
Já o mesmo não acontece com o leite. A diretora-geral da ANIL concorda que “tem havido um decréscimo do consumo de leite líquido. O ano em que tivemos mais consumo de leite foi 2005, com cerca de 90 litros ‘per capita’, e, de lá para cá, em 2008 houve um ligeiro acréscimo, mas depois foi sempre a descer. A tendência começou a ser invertida em 2016, onde já houve um aumento de cerca de três litros ‘per capita’”.
Queijo estrangeiro “chega cá muitíssimo mais barato”
A verdade é que de 2017 ainda não há “sequer estimativas”. Como a responsável da ANIL apenas trabalha com dados do INE, não tem certeza se há ou não uma inversão de tendência. “Mas, se assim for, é bom. Vamos esperar que seja, de facto, uma inversão das quebras no consumo”, diz.
Já nos iogurtes, é diferente. “Mante- mos um consumo ‘per capita’ na ordem dos 20 quilos por ano”. Por outro lado, “temos perdido em termos de leite líquido, mas temos vindo a aumentar o consumo de queijo. Neste momento estamos com cerca de 12 quilos ‘per capita’ por ano, o que é muito bom”. E a boa notícia é que “há espaço para crescer mais”, porque “o queijo é um produto de que se fala todos os dias, aparecem novas lojas de queijos, quase todos os dias aparece nas tendências, aparecem pessoas a falar e a consumir queijo”.
E temos condições para fazer diminuir as importações de queijo?, perguntámos, questionando por que é que importamos tanto queijo. A diretora-geral da ANIL hesita, mas concede que isso “tem a ver com o preço do queijo que vem de fora”. Lembrando que “temos de ter sempre alguma importação de especialidades de outros países, porque isso faz parte da diversidade do mercado”, Maria Cândida admite que “comprar queijo produto básico de outros países prende-se com o preço de produção e com a disponibilidade do produto noutros mercados e que chega cá muitíssimo mais barato”. Depois, nos lineares, “os primeiros preços de muito produto [queijo] que estão por aí são preços de combate para o consumidor”. A responsável da ANIL não tem dúvidas: “temos 80 mil toneladas de queijo produzido em Portugal e, destas, 60 mil são de leite de vaca e cinco mil toneladas feitas a partir da mistura de leites”. Apesar disso, “ainda importamos cerca de 50 mil toneladas de queijo. É muito queijo que estamos a importar”.
Portanto, o preço “influi” diretamente nas importações, mas, ainda assim, “temos capacidade para crescer e para produzir mais queijo. Até porque a maior parte do leite produzido em Portugal vai para a produção de queijo”, pois “para cada quilo de queijo precisamos de cerca de 10 litros de leite”.
Mas a pergunta impõe-se: um aumento da produção de queijo poderá levar a que o preço pago à produção também aumente, tendo em conta que o queijo é um produto de maior valor acrescentado? Em resposta, Maria Cândida Marramaque fala do “valor que se perde na cadeia de distribuição”. Não querendo “apontar um dedo à distribuição”, começa a fazer cálculos: “um quilo de queijo custa cinco/seis euros na montra de um hipermercado. Ora, se eu, para cada litro de leite, pago 30 ou 30 e qualquer coisa cêntimos à produção, e se preciso de 10 litros de leite para fazer um quilo de queijo, são três euros, três euros e tal, certo? O que é que me fica? Três euros ou menos. Eles [distribuição] vendem a seis euros o quilo. Ou, se o produto estiver em promoção, até [vendem] a 5,5 euros ou a 4,5. Portanto, há três euros ou menos que não chegam à indústria”. E deixa a pergunta no ar: “como é que eu faço [a indústria] para pagar os equipamentos, as minhas contas de eletricidade, água, transportes, gasóleo, salários? Onde é que isso fi ca? Não fi ca. A indústria não tem disponibilidade para este fator”. O problema, diz, é que “vemos qual é o preço de venda de um litro de leite em Portugal e em Espanha. Neste momento, lá custa mais 30 ou 40 cêntimos”.
“Há sempre um estrangulamento” para a inovação na indústria
E porque é que isso acontece, afinal? O consumidor português está menos disposto a pagar pelo leite? A diretora-geral da ANIL nem hesita: “o consumidor português está disposto a pagar menos por tudo”, diz, lembrando que, a par disso, “temos produtos que são chamariz em termos de ação promocional. E o leite é um deles. E o queijo também. Não há um folheto de supermercado que não traga o queijo. Temos alguns produtos que são chave para chamar o cliente à loja: o leite e o queijo são dois”.
Questionada sobre se isso reduz a sua capacidade fi nanceira para a inovação e para acrescentar valor ao produto, Maria Cândida hesita. Mas acaba por reconhecer que “há sempre um estrangulamento”, apesar do “dinamismo” e da “vontade de trabalhar novos produtos e novas dimensões para o consumidor final”.
Porque, afinal, “basta fazer contas: se eu tenho um litro de leite que custa 30 cêntimos, tenho de o tratar termicamente, tenho de o pôr no pacote, pô-lo na distribuição e se ele é vendido a 40 ou a 45 ou a 50 cêntimos, onde é que está a margem? São contas simples. Nós temos produtos que utilizam um ingrediente principal. Quando estamos a falar de inovação e de novos produtos, onde é que vemos isso? Nos iogurtes. É um setor muito dinâmico. Também na indústria de queijo hoje em dia temos novos produtos para novos momentos de consumo, com o acrescentar de novos sabores. Isso permite uma nova dinâmica. E apesar do investimento que é necessário fazer em embalagem e rotulagem, mantém-se dinâmico e não sente muito este esmagamento por parte da distribuição”.
Maria Cândida Marramaque constata: “em Portugal temos um setor de leite UHT muito forte. Depois temos os leites aromatizados, compostos, que trabalham gamas específicas de pessoas. A sensação que tenho é que, por força da crise que existiu, algum tipo de produto deixou de estar tão visível no linear. E só aquele consumidor que era muito certo é que se manteve. As pessoas voltaram ao produto base, a não ser aquelas que procuravam algum benefício em termos de saúde com o adicionar de algum componente. Houve foi um grande dinamismo nos leites sem lactose”.
Porquê? “Porque o consumidor pede”, diz a responsável da ANIL. “E a indústria adaptou-se. E também temos um grande dinamismo nos leites mais perto da natureza, porque o consumidor procura”. Aliás, diz, “é uma coisa que temos de fazer e que eu gostaria de capitalizar”, ou seja, “transmitir ao consumidor que o produto lácteo é um produto muito perto da natureza, muito pouco processado, apesar de olharmos para uma fábrica e ela poder parecer altamente tecnológica e de ter de assegurar todas as condições de segurança alimentar para o consumidor”. Não obstante, “o leite tem unicamente um tratamento térmico”.
“Consumidor vai de palpite em palpite, de tendência em tendência”
O que existe, lamenta Maria Cândida, “é cada vez mais ruído. E tendências em termos de nutrição, de vivências a nível mundial, que fazem com que o consumidor experimente novos produtos. Estamos numa fase de experimentação, as pessoas querem sair daquilo que consumiam, porque há uma tendência para uma alimentação saudável que traz um monte de novos alimentos completamente fora do que era a nossa dieta”. Portanto, “há que ganhar o consumidor para o consumo do leite e explicar-lhe os benefícios”.
A diretora-geral da ANIL tem noção da “tendência do ‘sem isto’ ou ‘sem aquilo’ e ‘sem lácteos’”, notando que “facilmente encontramos um consumidor que diz que é intolerante à lactose, mas sem perceber se é intolerante de facto, ou seja, depois de efetuar um teste. São modas, tendências, sem qualquer sustentação médica, só porque alguém diz ‘olha, retirei os lácteos da minha dieta e sinto-me fenomenal, muito mais leve’. E depois vem outro e diz ‘olha, eu retirei a carne’ e outro ainda que diz ‘retirei os bróculos e sinto-me maravilhosamente’. E estamos nisto. O consumidor vai de palpite em palpite, de tendência em ten- dência”.
Qual é, então, a prioridade? É “recentrar, capitalizar a ideia da naturalidade do produto, da proximidade com a natureza e para aquilo que são consumos de produtos lácteos recomendados, mostrando que o produto lácteo, mesmo que seja adicionado de outros elementos, não é nocivo, como muitas vezes querem fazer passar”.
Fonte: Vida Económica